Os blocos tomam espaço das bandas de Belo Horizonte ou ajudam a aumentar o alcance da música feita na cidade?
Na primeira parte dessa reportagem, contamos uma das muitas histórias possíveis sobre o reflorescimento do carnaval de rua de BH: as conexões de uma cena de música autoral com o surgimento de blocos, composição de hinos e mobilização pra ocupar as ruas.
Contudo, uma pergunta ficou no ar: é possível aproveitar o movimento gerado pelo carnaval para aumentar o alcance das bandas locais? Assim como acontece em Recife e Salvador, a festa pode ser uma vitrine para novos artistas?
As duas cidades citadas acima há décadas têm um carnaval conhecido nacionalmente. Em ambas, cada uma à sua maneira, a folia nas ruas ajuda a projetar a música local. Belo Horizonte, é claro, trilha seus próprios caminhos e tem lá suas idiossincrasias. Mas as conexões com a música independente continuam permeando o carnaval de BH. Há artistas que compõem músicas para blocos, outros que criam marchinhas e alguns que se inspiram na festa para criar suas próprias canções.
Há também iniciativas que trazem essas relações à tona. Durante o pré-carnaval, em 2017, a capital mineira foi palco de uma nova experiência: um trio elétrico desfilou pelo baixo centro ao som de 10 bandas independentes (7 delas de BH), na presença de 15 mil foliões.
“Acho o Trio Chacoalha muito importante pra cidade por valorizar o trabalho de artistas que ajudam a movimentar o carnaval. O carnaval cresceu muito e, de certa forma, ele engoliu um pouco a cena autoral. Muitos artistas acabam circulando mais com os blocos do que com seu trabalho próprio”, afirma Gustavito, músico que se apresentou no Trio Chacoalha e integra blocos como Então, Brilha e Pena de Pavão de Krishna.
Quase toda “banda de bloco” é uma “banda cover”
Como menciona Gustavito, o carnaval de BH ficou enorme. Alguns blocos se tornaram representativos e populares, atraindo milhares de foliões pra rua. Logo, uma nova onda tomou o mercado cultural da cidade: blocos se apresentam em festas fechadas durante todo o ano em formações com baterias reduzidas chamadas de “banda do bloco”.
Apesar de algumas dessas bandas terem músicas próprias, elas tocam principalmente hits de outros artistas. Com isso, uma pergunta passou a rondar conversas de pessoas envolvidas com a cena musical da cidade: esses grupos estão ocupando o espaço dos artistas autorais?
“Com esse lance dos blocos virarem bandas e tocarem cover, começou a rolar isso: os músicos recebem cachês melhores tocando hits e deixam um pouco de lado o investimento em suas bandas autorais. Os próprios músicos que lutavam contra BH ser a cidade do cover, acabam tocando nessas bandas covers dos blocos, o que “toma” espaço dos trabalhos autorais desses artistas. É contraditório porque, ao mesmo tempo, eles precisam sobreviver e o que está dando grana no momento é isso”, reflete a produtora cultural Jana Macruz.
O compositor Matheus Brant, um dos criadores do bloco Me Beija Que Eu Sou Pagodeiro, acredita que os blocos ocupam um nicho que já existia na cidade, mas reconhece que os shows desses grupos têm mais projeção do que o seu trabalho autoral. Em 2016, ele lançou o disco Assume Que Gosta, com músicas que dialogam com a estética carnavalesca, mas ainda assim considera difícil transpor os públicos.
“Eu gostaria que o meu trabalho autoral fosse mais valorizado. A mudança é possível, principalmente agora que a rádio Inconfidência começou a tocar músicas produzidas aqui, mas é preciso ir muito além para criar público, ao passo que com o Chama o Síndico, o Me Beija, é fácil, são músicas muito conhecidas. Eu fiz dois shows abrindo pro bloco desde que lancei o Assume Que Gosta. Algumas pessoas estranham porque chegam pra cantar junto com um bloco e vêm um show com outra linguagem. Se não tiver uma indústria por trás, dificilmente a gente consegue absorver esse público do carnaval”, completa Brant.
Apesar de atualmente viver em São Paulo, a musicista Juliana Perdigão tem uma proximidade muito grande com a cena musical de BH e raramente deixa de comparecer na cidade durante o carnaval. A artista fez parte de grupos — como o Outro Rock — que ajudaram a reconstruir a festa nas ruas da cidade e, como outros músicos dessa geração, percebeu que aquela cena de música autoral não acompanhou o crescimento do carnaval.
“Eu acho que a maioria das pessoas está mais a fim de festa do que de ser um público atuante na evolução da nossa música. Eu não sei se é falta de interesse do público, se é falta de comunicação nossa. Não vou exigir que as pessoas queiram ouvir meu som durante o carnaval porque ele é diferente do que se considera carnavalesco, mas o Gustavito tem a ver e mesmo assim não ganha tanta visibilidade. No Brilha, o Chris (Di Souza) tá em cima do trio elétrico com mais de 30 mil pessoas vendo ele ali, mas não sei se a galera tem interesse no seu som autoral”, indaga Juliana.
Os blocos espalham (um pouco) da música do Bellot
Gustavito, Di Souza, Matheus Brant, Nara Torres, Chaya Vasquez, Isabela Leite…. são apenas alguns dos muitos músicos com os quais conversamos (leia todos os textos aqui) que integram blocos belorizontinos e também possuem projetos autorais. Para vários deles, o carnaval se tornou fonte de inspiração e permeia composições de maneiras diversas.
O segundo disco de Matheus Brant, por exemplo, começou a ser pensado quando ele criou o bloco Me Beija Que Eu Sou Pagodeiro e notou muita gente aderindo ao pagode a ponto de ir pra rua cantar com o bloco.
Já Juliana Perdigão achou que o momento era propício para registrar o hino da Alcova Libertina. Em seu álbum mais recente, Ó, ela reinterpreta a marchinha que, em tom provocante e debochado, vocifera contra o conservadorismo: “Chuta a família mineira!”.
“Eu gravei o hino da Alcova por causa da proximidade com os meninos e porque eu tinha uma afeição pela história do carnaval, mas na época eu achava ela um pouco anacrônica, utópica demais. Os tempos foram mudando e a letra começou a fazer mais sentido, infelizmente. Eu acho que é uma canção que deve ser cantada por mim e por várias pessoas porque realmente virou um hino não só da Alcova, mas um cântico de guerrilha”, comenta Juliana.
Outro músico que vive intensamente essa conexão é Gustavito. Além de compor para os blocos — Então, Brilha e Pena de Pavão de Krishna são alguns que têm marchinhas de sua autoria — ele incorporou as experiências vividas no carnaval às suas composições. O seu trabalho mais recente, Quilombo Oriental, faz homenagem ao PPK, misturando o imaginário indiano com a cultura afro-brasileira. Ele acredita que sua atuação no PPK e no “Brilha”, de alguma forma, impulsiona o seu trabalho de canções.
“Os artistas, como eu, que estiveram envolvidos nesse processo de retomada do carnaval fizeram isso por amor, por paixão, por vontade de fazer uma festa do jeito que a gente acreditava. E quando ela cresceu, isso deu uma oportunidade pro nosso trabalho artístico chegar a mais pessoas. Eu sou do Então, Brilha e do PPK e depois que esses blocos cresceram, meu trabalho também cresceu, embora não tanto quanto a projeção dos blocos. Por isso, procuro atuar como compositor nos blocos de que participo”, pondera Gustavito.
Juventude lacradora e autoral
Nas primeiras movimentações para reinventar o carnaval da cidade, a criação de um hino era ponto de partida para se formar um bloco. Cinco anos depois da coletânea CarnavalizaBH (falamos dela na parte 1 dessa reportagem), o bloco Juventude Bronzeada deu um passo à frente e lançou um disco de músicas próprias.
Chamado de Tropical Lacrador, o álbum mistura axé com outros ritmos brasileiros e já tem até hits locais, como “Hino da Juventude Bronzeada” e “Drink do Amor”. As faixas são assinadas por Carlos Bolívia, Leopoldina, Pedro Thiago, Priscilla Glenda, Rodrigo “Chapinha” Castriota, Sara Campos e Thales Silva, músicos que integram as bandas A Fase Rosa, Djambê e Djalma Não Entende de Política.
Antes, as pessoas iam em festas das bandas locais e se sentiam num ambiente criativo. Depois, elas passaram a ir a festas de carnaval e a se sentir nesse mesmo ambiente criativo. Por isso, acho que é necessário tomar um cuidado, não no sentido de frear, mas de fazer isso que a Juventude acabou fazendo. A gente tem que forçar um pouquinho porque o carnaval, querendo ou não, aparece com uma proposta de entretenimento absoluto e é necessária essa atenção. Se não tivermos cuidado, a gente passa a só tentar entreter as pessoas, sem nenhuma proposta um pouco mais ousada ou sem acreditar que elas possam gostar de uma música nossa, reflete Thales Silva, da Juventude Bronzeada
O artista e ativista Di Souza tem um trabalho autoral que foge da linguagem típica do carnaval. Ao mesmo tempo, o músico — que é maestro do Então, Brilha! — tem uma carreira que dialoga com a cultura carnavalesca e considera que é possível abrir caminhos para composições dentro dos blocos.
“A Juventude lacrou com esse disco autoral, que é uma coisa que o Brilha sempre ameaçou fazer, mas nunca fez. O carnaval de rua vem desse lugar, o que se destacou no início foi a música de cada bloco e quando o mercado de festas abriu as portas para os blocos, eles não tinham repertório próprio. O Brilha tem 4 músicas autorais e temos a intenção de colocar mais. É um movimento que eu vejo acontecendo em vários blocos, de valorizar os artistas da cidade”, afirma.
Construir para resistir!
À medida que esses trabalhos ganham espaço, o carnaval de BH vai (re)construindo sua identidade. Ou suas muitas caras, já que ele se estende para além desses recortes. De qualquer forma, isso só é possível porque existiu inicialmente um esforço coletivo para vivenciar mais a cidade. Essa luta pela ocupação do espaço público, levada em frente por uma geração de artistas, ativistas, produtores e foliões, foi transformando as possibilidade.
“Hoje os blocos têm uma força muito grande, mas o que espalhou isso foi a militância da rua, com todas as brigas que foram necessárias pra conseguir espaço. Incrivelmente, o Brilha conseguiu fechar a Guaicurus pra fazer um ensaio. Isso é fruto de toda uma luta, uma negociação longa e a música autoral tá dentro disso. Hoje em dia, você canta na cidade: Ôôô (início do Hino do Brilha), e todo mundo começa a cantar junto. É muito bonito”, comemora Di Souza.
O músico e historiador Guto Borges chama atenção para o fato de que a participação dos artistas locais no carnaval é importante para ajudar a moldar a identidade própria da folia na capital mineira.
“As músicas que integram essa cultura do carnaval que passa a existir são músicas autorais, das bandas, mas isso perde o fôlego. Eu falo dessa aliança imediata, entre cena autoral e carnaval. A partir de 2012, o carnaval ganha um público muito grande e a projeção sobre as bandas não acompanha. O lançamento do Tropical Lacrador tem um traço geracional: é uma segunda geração que aprendeu que para o carnaval sobreviver na cidade, não pode só consumir a música de outros lugares, mas produzir também sua cultura e memória”, aponta Guto Borges.
Carnaval pode ser polifônico, mas precisa ser popular
Tem que ser samba, axé ou marchinha pra ser música de carnaval? A turma da Híbrido acredita que a festa é múltipla e tem trabalhado para ampliar esses horizontes.
Depois de 3 edições do S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L. durante o pré-carnaval, a quinta mergulhou fundo na folia e aconteceu no carnaval. Em 2014, a Praça da Savassi foi ocupada por 80 mil pessoas. Um público diverso foi pra rua se divertir ao som de 7 bandas independentes que, geralmente, fazem shows para um público bem mais restrito.
Em 2017, a experiência se repetiu no pré-carnaval, com o Trio Chacoalha, reunindo Graveola, Família de Rua, Djalma Não Entende de Política, Iconili, Gustavito, Pequena Morte, Di Souza, Yellow Cap, Eddie e BNegão & Seletores de Frequência.
“A gente defende que as bandas de BH podem estar mais presentes no carnaval, tanto com a inclusão de mais músicas delas nos repertórios dos blocos, como também fazendo shows nas ruas da cidade durante o período. No carnaval, as pessoas querem celebrar ouvindo músicas dançantes, mas não precisa ser necessariamente de um ritmo específico, afirma Victor Diniz, sócio da Híbrido.
Valorizar a produção autoral não significa menosprezar o trabalho dos blocos cover. Muitos levam a sério a parte artística de suas releituras e criam experiências que realmente emocionam as pessoas. Outros, mesmo que na base do improviso, cativam multidões pelas ruas. Além disso, a maioria dos desfiles é organizada e protagonizada por gente que tem a música como atividade paralela e não pretende transformá-la em profissão.
É natural que os blocos priorizem hits, especialmente aqueles (blocos) formados por pessoas que não são compositoras e que não precisam nem querem fazer da música um trabalho. Não se trata de profissionalizar todo o carnaval, mas de buscar maneiras de inserir a produção local dentro da festa que a cidade está construindo”, explica Victor Diniz, sócio da Híbrido.
O carnaval de Salvador foi citado no início desse texto como uma referência de folia que conseguiu projetar nacionalmente sua produção local. Porém, essa projeção trouxe contradições que Belo Horizonte deve tentar evitar. Afinal, junto com a “indústria do Axé”, vieram os abadás e a privatização da festa. O carnaval (e o dinheiro gerado por ele) acabou ficando na mão de alguns empresários, (alguns) artistas, gravadoras, etc.
“Os blocos de Salvador lançaram muita gente, mas com a profissionalização, o fazer político do axé music foi ficando para trás, na memória dos blocos afro. Em BH, as diretorias dos blocos são compostas de gente como eu, que sou músico, mas também por um amigo que é professor de geografia e também é músico, mas que vive de educação, da outra que é garçonete e também é música e assim vai. Então, essa diversidade, essas cabeças que são tão diferentes e pensantes é o que dá a tonalidade e a força que o carnaval tem. Quando se pensa em valorização da música autoral é preciso um cuidado pra não tirar a autonomia e não apagar o brilho das pessoas que não são artistas profissionais, mas que também estão envolvidas na construção do carnaval”, afirma Di Souza.