Axé, grandes nomes da música nacional e clássicos de carnaval dominam o repertório dos blocos de Belo Horizonte. Há espaço para as composições das bandas e artistas locais que ajudaram a reconstruir o carnaval da cidade?
Parte 1/2
“Dizem que a Tetê é uma santa, que faz milagre, coisa e tal, Mas milagre mesmo, minha santa, é BH ter carnaval. E nisso a Tetê não tá sozinha, Mamá-na-Vaca já desceu até a vaquinha, Eu quero ver o Tico-Tico serrar copo e o Peixoto sorrindo pra foto, Eu vou sair no bloco do Tcha Tchá, Eu quero ver o que o Rafa vai arrumar, Eu sou amarelo ouro e rosa choque, Tetê, a santa, ela é do rock”
O hino do Tetê A Santa — bloco que desfila(va?) pelas ruas do Santê — é a trilha ideal para iniciar o terceiro texto (leia os outros aqui, publicados no ano passado) sobre a história do carnaval de rua de BH, (re)iniciado nos idos de 2009.
A música é uma composição de Miguel Javaral, rockeiro responsável pelo festival de música experimental Não-Onda. Além de transformar o momento em versos, a marchinha é fruto de um movimento curioso: a íntima relação de uma cena de música autoral — que vivia seu auge na época e que nada tinha de carnavalesca — com o reflorescimento da folia na capital.
“A coisa do carnaval foi benéfica em vários sentidos: pra cidade, pra gente ter consciência de que a festa faz parte da nossa cultura e que a ocupação do espaço público é essencial. Mas o mais louco é que entre as pessoas que fizeram essa coisa toda, ninguém é expert em marchinha, samba e carnaval. É um bando de roqueiro, indie, maconheiro maluco”, revela a musicista Juliana Perdigão.
Um coletivo de coletivos
Pra contar essa história, precisamos voltar um pouco no tempo. Nos anos 00, muitos coletivos culturais surgiam Brasil afora, reunindo pessoas com interesses compartilhados para desenvolver ideias e ações em estruturas que tentavam ser horizontais. BH também entrou na onda.
Entre várias outras, nasceram nessa época iniciativas como o selo e web tv Queijo Elétrico, o festival S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L!, o AZUCRINA com seu selo virtual e festivais na rua e o Coletivo Pegada que, além de outras coisas, organizava o Festival Transborda e era o ponto local da incipiente Rede Fora do Eixo. Os coletivos (muitos nem gostavam desse nome) eram bem diferentes, mas tinham em comum o desejo de levar a música local para as ruas da cidade.
Em 2008, foi criado o Outro Rock, um festival organizado por 14 bandas de BH. No ano seguinte, o evento teve sua segunda e última edição. Mas a articulação entre os grupos continuou e o Outro Rock acabou se transformando em um “coletivo de bandas” que chegou a reunir dezenas de grupos da capital mineira: Monno, Transmissor, Tempo Plastico, Fusile, Dead Lover’s Twisted Heart, Ram, Proa, Pêlos de Cachorro (atual Pelos), Graveola, Vostok Deluxe, Frito na Hora, Dibigode, The Junkie Dogs, Julgamento, Pequena Morte, são alguns deles.
Uma banda apoiava a outra, festivais ocupavam as ruas, coletâneas eram lançadas e a mídia começou a dar mais atenção: uma cena passou a se reconhecer.
“A gente começou a fazer reuniões semanais. Esses encontros foram importantes: estava cada um no seu canto e de repente as pessoas se identificavam, trocavam experiências. Tivemos vários planos mirabolantes — que a gente nunca conseguiu fazer — , mas foi muito importante tanto para o processo artístico das bandas, quanto pra cena. As ações de um grupo de bandas chegavam com mais força na mídia e o próprio público passou a ver de uma forma diferente” — analisa Jana Macruz, produtora cultural que se envolveu com o Outro Rock e fundou o bloco do Manjericão.
Nessas conversas, as bandas começaram a se perguntar qual era o alcance do trabalho que estavam produzindo e o que poderiam fazer para se aproximar de mais pessoas. O questionamento levou o grupo a uma reflexão que foi o ponto de partida para as ações do Outro Rock: pra mudar, é preciso criar novas formas de vivenciar e compartilhar o espaço público.
“A gente começou a entender que a própria dinâmica de BH promovia um estreitamento muito grande e que nós mesmos vivíamos e conhecíamos muito pouco a própria cidade. O Outro Rock começou a fazer os festivais na rua pra participar mais da vida na cidade e essa pergunta começou a orientar as bandas: como ser de fato uma banda de BH? A ideia era atenuar essas distâncias enormes que a cidade de Belo Horizonte cultiva na sua imagem de cidade, nas suas práticas urbanas e na sua administração, nas suas políticas. De alguma forma, o Outro Rock foi um impulso — muito primário ainda — pra tentar lidar com isso”, analisa Guto Borges historiador e músico da banda The Dead Lover’s Twistted Heart e de diversos blocos de BH.
Crescendo o bonde, amplificando a luta
Com o tempo, essas conversas romperam fronteiras e aproximaram também grupos de outras áreas. Em 2010, a galera da música começou a trocar mais com o pessoal do teatro — que também tinha um movimento chamado Nova Cena — com grupos de dança, de artes plásticas, com movimentos sociais.
“Até então a gente tinha uma luta: “vamos ocupar a rua e fazer um festival”. De repente, o motivo não era mais só o festival de música e sim ações como: “vamos fazer um festival de música no Dandara (ocupação ao norte da cidade onde vivem mais de 8 mil pessoas) porque se formos lá, conseguiremos dar mais visibilidade à causa. Acho que a pauta se ampliou e passou a ser voltada para a cidade”, contextualiza Jana.
A Praia da Estação surgiu nesse contexto em que grupos se uniam para compartilhar cultura, ideias, afetos e, principalmente, a rua. O reflorescimento do carnaval também. De forma ainda tímida, novos blocos circularam em 2009 e em 2010, com baterias formadas por, praticamente, os mesmo músicos. Os blocos Mamá Na Vaca, Peixoto, Manjericão, Alcova Libertina, Tico Tico Serra Copo, Então, Brilha!, Filhos de Tcha Tcha, Unidos do Samba Queixinho, Tetê A Santa, Aproach e Beijo Elétrico foram alguns dos criados nessa época.
Acho que foi natural as bandas entrarem de sola no Carnaval, fazendo shows, compondo marchinhas, criando blocos, ocupando a rua! Isso tudo fazia parte desse pensamento maior de transformar a cidade e já estávamos com essa energia de recriação de espaços e modos de operação. Na minha percepção, foi um movimento unificado, não importando muito de que lado a gente sambava, se na música, se na academia, se na política. Tudo confluiu num só levante, conclui Flávia Mafra, produtora cultural (e autora das fotos que ilustram o início desse texto) que fez parte do Outro Rock.
Carnavaliza BH!
Ainda em 2010, integrantes do Outro Rock fizeram uma chamada pública na Casinha para começar a traçar o carnaval de 2011. A reunião aproximou pessoas até então distantes dessa rede. Foi quando surgiu a proposta de que cada bloco tivesse seu próprio hino e a ideia de fazer um registro dessas músicas.
Assim nasce o CarnavalizaBH!
A mobilização foi intensa. Músicos e criadores de blocos se reuniram para terem ideias, compor letras, melodias e, mais tarde, arranjos. Foram compostos os hinos dos blocos Filhos de Chachá, do Beijo Elétrico, Manjericão, Alcova, Mamá na Vaca, e outros.
“O que é importante dizer é que eram integrantes de bandas de BH que estavam envolvidos na composição e na execução dos hinos. Então é o Dead Lovers, Junkie Dogs, Fusile, Graveola, Tempo Plastico, Proa, etc. Tem uma mistureba de gente compondo essas primeiras canções, inclusive gente de grupos de BH que não eram do Outro Rock, como o Urucum na Cara. Mas acho que o principal dessa história é que, num primeiro momento, as bandas da cidade acionam um “capital social”, vamos dizer assim, e se colocam à disposição do carnaval”, afirma Guto Borges
Como não contavam com nenhum tipo de patrocínio, tudo aconteceu na base da camaradagem. O músico Vitor Santanna disponibilizou o estúdio da ONG Contato para a gravação de marchinhas como a Marchinha da Alcova e Mamá Na Vaca. Outras foram gravadas no estúdio do Queijo Elétrico, que também ajudou na divulgação com teasers e coberturas. Algumas músicas foram gravadas por Miguel Javaral em sua própria casa.
“Quando um coletivo está junto, a ideia espalha mais rápido. E o coletivo ficou enorme. Não era mais só um coletivo de bandas, era um coletivo de pessoas que estavam ligadas à cena musical independente da cidade. E foi essencial porque se fosse um grupo que não tivesse músicos, talvez não tivesse essa força toda para compor e gravar as marchinhas.
Não tinha um preciosismo de qualidade sonora até pelas ferramentas que a gente tinha, mas tentamos fazer a coisa mais legal possível. Na tora mesmo. Depois, teve o lançamento do LP Deita no Cimento, da Vinyl Land, e algumas marchinhas tiveram que ser regravadas. Mas o objetivo não era esse, era registrar, colocar no mundo e fazer campanha: fique em BH, vamos carnavalizar” , revela Jana Macruz.
Banda autoral no carnaval é S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L!
Em 2011, BH começava a enxergar seu potencial para a festa: havia música, blocos e centenas de foliões na rua. Da movimentação, veio a ideia de aproveitar esses encontros e apresentar as bandas autorais para o público da cidade. Foi a partir daí que a Híbrido Comunicação e Cultura decidiu realizar a segunda edição do Festival S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L! durante o pré-carnaval.
No dia 26 de fevereiro de 2011, o S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L! 2 recepcionou o bloco Mamá na Vaca no quarteirão fechado da rua Antônio de Albuquerque, na Savassi. Cerca de 5 mil pessoas curtiram os shows de 5 bandas independentes. E deu tão certo que, entre 2012 e 2014, o festival levou a ideia adiante, com a diferença de terem reunido mais artistas e um público ainda maior.
Os maiores carnavais do país são festas com projeções nacionais, mas que historicamente ajudam a amplificar o alcance das composições locais. BH está reinventando sua identidade, e ela seguramente será pautada pela diversidade que já caracteriza a folia na cidade. Porém, entendemos que o carnaval pode ser, também, uma importante ferramenta de divulgação e fomento do rico cenário musical de Belo Horizonte, defende Victor Diniz, da Híbrido Comunicação e Cultura, produtora do Festival S.E.N.S.A.C.I.O.N.A.L! e do Trio CHACOALHA, que desfila pela primeira vez nesse ano.
O Coletivo Pegada também viu nessa retomada uma oportunidade para projetar as bandas de BH. Na época, o grupo produzia o festival Grito Rock, em Belo Horizonte, que acontecia durante o carnaval, n’A Obra. Em 2011, o festival percebeu que o momento era propício e levou 3 bandas para tocar na rua ao lado do bloco Beijo Elétrico:!Slama, Valsa Binária e Cães do Cerrado. Em 2012, o coletivo foi além e realizou o Bloco do Grito.
“ Em 2011, foi a primeira vez que a gente fez o Grito Rock na rua: fizemos o corre de alvarás tanto pro Grito quanto pro bloco da Alcova, que rolou embaixo da marquise do bar do Orlando. Em 2012, nos juntamos com o Bloco do Delírio, e montamos um palco na rua que extrapolou todas as expectativas e ficou completamente lotado“, lembra Lucas Mortimer, do Coletivo Pegada.
Sem dúvidas, foi em 2012 que o milagre previsto no Hino da Tetê foi consumado: neste ano, Belo Horizonte carnavalizou! O video acima, feito pelo I Love Bubble, mostra bem o clima que tomou conta das ruas no período. A partir de 2013, juntos, os blocos da cidade passaram a reunir milhões de pessoas. E a cada ano, a quantidade de blocos e de gente atraída por eles só aumenta. Porém, o espaço dado às bandas de BH no carnaval não acompanhou esse crescimento.
Trilha do video acima, a música Apocalipse do Amor, do Dead Lover’s Twistted Heart, foi lançada em 2012 e surfou um pouco na onda foliã que a banda ajudou a criar, mas não passou nem perto do fenômeno popular dos sucessos de outros carnavais do Brasil.
Com isso, voltamos à dúvida do título: é possível aproveitar o movimento gerado pelo carnaval de BH para aumentar o alcance das bandas da cidade? Embora não tenha uma resposta definitiva, esse e outros pontos ligados à relação da cena de música autoral da capital mineira a partir do carnaval de 2013, serão tratados na segunda parte desse texto. Até lá =)